

Clarice
Guilherme Fragosso
Apresentar alguém que simplesmente dispensa qualquer apresentação. Assim é com Clarice Lispector, uma mulher de muitas facetas no lado profissional: escritora, jornalista, tradutora e formada em Direito, pela Universidade do Brasil (atualmente, Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Além do profissional, podemos citar outra faceta da autora: mãe. Lispector teve dois filhos com seu marido Maury Gurgel Valente. O mais velho, Pedro Lispector Valente, nasceu em 1948, em Berna, Suíça. O segundo, Paulo Lispector Valente, nasceu em 1953, em Washington, nos Estados Unidos.
Clarice nasceu no dia 10 de dezembro de 1920, na pequena cidade de Chechelnyk, Ucrânia, mas isso não a impediu de assumir sua inteira brasilidade, declarando-se sempre “pernambucana”. Mudou-se muito jovem de seu país, acompanhada de seus pais, Pinkhas e Mania Lispector, e de suas duas irmãs, Tania e Leia para o lugar que então seria sua terra natal, o Brasil.
Quando chegou ao Brasil, em Maceió, a família precisou abrasileirar seus nomes: Pinkhas passou a ser Pedro; Mania virou Marieta; Leia, Elisa; Tania não teve modificação; e Haia Pinkhasovna se tornou Clarice. A autora faleceu aos 56 anos, em 1977, na cidade do Rio de Janeiro.
Por conta da profissão do marido, que era diplomata, Clarice viajou para muitos locais do mundo, mas nunca abandonou o amor pela literatura. As cartas, que eram enviadas para suas irmãs, e que descreviam a rotina e o cotidiano da escritora nos lugares, eram repletas de alma lírica e de um estilo incomparável, como o escritor Alceu Amoroso Lima uma vez citou: “Ninguém escreve como ela e ela não escreve como ninguém”.
Algumas das principais obras da escritora são: “Perto do Coração Selvagem” (como livro de estreia, em 1943), “Laços de Família” (1960), “Paixão Segundo G.H.” (1964), “Felicidade Clandestina” (1971) e “A Hora da Estrela” (1977). Nesta última história, há uma intertextualidade da personagem cartomante com o conto “A Cartomante”, de Machado de Assis.
Clarice Lispector, porém, não foi somente uma belíssima escritora, com seus contos que pareciam querer desvendar as profundezas da alma. Ela também levou esse lado para o jornalismo. Suas entrevistas são incomuns, encantadoras, um bate-papo refinado, em que o entusiasmo de Clarice se sobrepõe até mesmo ao de seus entrevistados; sua vida pessoal e suas opiniões são constantes nos diálogos.
Clarice Lispector não fez uma autobiografia, como ela insistia em dizer que não faria. Em suas crônicas, porém, publicadas entre 1967 e 1973 no Jornal do Brasil, mesmo que sutilmente, conseguiu expor seu cotidiano e apresentar fatos e personagens carismáticos de sua vida íntima.
A entrevista a seguir, em que somente as perguntas foram produção do projeto “O Relicário”, tenta retratar o lado reservado e pouco conhecido de uma das maiores escritoras, e senão a maior, do Brasil. As respostas são excertos de diversas crônicas publicadas no livro “A Descoberta do Mundo” (1999), da editora Rocco, sem nenhuma alteração. Sabemos, porém, que sua personalidade complexa vai além deste mashup textual experimental.
Clarice, por que te fascina tanto esse mundo das palavras? Como surgiu essa sua vocação para escrita?
“A palavra é meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por quê, foi esta que eu segui. Talvez porque para as outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada vez que eu vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever” (p. 101-102).
Se você tivesse de escolher entre a literatura e cuidar dos seus filhos, qual escolheria?
“Se tivesse que escolher uma delas, que escolheria? A resposta era simples: eu desistiria da literatura. Nem tem dúvida que como mãe sou mais importante do que como escritora” (p. 60).
Uma vez você entrevistou o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues e pouco conversaram sobre futebol. Você torce para algum time? Qual sua relação com o esporte?
“Sou Botafogo, o que já começa por ser um pequeno drama que não torno maior porque sempre procuro reter, como as rédeas de um cavalo, minha tendência ao excessivo. É o seguinte: não me é fácil tomar partido em futebol - mas como poderia eu me isentar a tal ponto da vida do Brasil? - porque tenho um filho Botafogo e outro Flamengo. E sinto que estou traindo o filho Flamengo. Embora a culpa não seja toda minha, e aí vem uma queixa contra meu filho: ele também era Botafogo, e sem mais nem menos, talvez só para agradar o pai, resolveu um dia passar para o Flamengo. Já então era tarde demais para eu resolver, mesmo com esforço, não ser de nenhum partido: eu tinha me dado toda ao Botafogo, inclusive dado a ele minha ignorância apaixonada por futebol. Digo ‘ignorância apaixonada’ porque sinto que eu poderia vir um dia apaixonadamente a entender de futebol” (p. 90).
Deve ser uma rivalidade e tanto na sua família. Clarice, como é sua relação com seus filhos?
“Filhos são, como se diz, a nossa carne e o nosso sangue, e nem se chama de interesse. É outra coisa. É tão outra coisa que qualquer criança do mundo é como se fosse nossa carne e nosso sangue” (p. 30).
“Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o voo necessário, e eu ficarei sozinha. É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos” (p. 102).
Você tem medo de ficar sozinha e morrer sem ninguém?
“Na hora de morrer eu queria ter uma pessoa amada por mim ao meu lado para me segurar a mão. Então não terei medo, e estarei acompanhada quando atravessar a grande passagem. Eu queria que houvesse encarnação: que eu renascesse depois de morta e desse a minha alma viva para uma pessoa nova. Eu queria, no entanto, um aviso. Se é verdade que existe uma reencarnação, a vida que levo agora não é propriamente minha: uma alma me foi dada ao corpo. Eu quero renascer sempre. E na próxima encarnação vou ler meus livros como uma leitora comum e interessada, e não saberei que nesta encarnação fui eu que os escrevi” (p. 102).
Eu acredito em reencarnação também, às vezes me pego pensando em como será a minha vida depois da morte. E qual sua opinião sobre o mundo em que vivemos? Ele te agrada?
“Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece” (p. 37).
Você acredita que as pessoas nascem neste mundo com um propósito?
“Fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe” (p. 111-112).
Mesmo não cumprindo seu propósito, você realizou outras missões. Isso é uma característica sua? Você é uma pessoa determinada?
“Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma ideia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade. Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. Há um perigo: se reflito demais, deixo de agir. E muitas vezes prova-se depois que eu deveria ter agido. Estou num impasse. Quero melhorar e não sei como. Sob o impacto de um impulso, já fiz bem a algumas pessoas. E, às vezes, ter sido impulsiva me machuca muito. E mais: nem sempre meus impulsos são de boa origem. Vêm, por exemplo, da cólera. Essa cólera às vezes deveria ser desprezada; outras, como me disse uma amiga a meu respeito, são cólera sagrada” (p. 181).
Para finalizar Clarice, como você, em apenas uma frase, se definiria então?
“Sou tão misteriosa que não me entendo” (p. 116).
Informações retiradas do livro "Clarice na cabeceira: jornalismo", com organização e apresentações de Aparecida Maria Nunes.