
A MINEIRA CALADA
Clarice Lispector
Aninha é uma mineira calada que trabalha aqui em casa. E, quando fala, vem aquela voz abafada. Raramente fala. Eu, que nunca tive empregada chamada Aparecida, cada vez que vou chamar Aninha, só me ocorre chamar Aparecida. É que ela é uma aparição muda. Um dia de manhã estava arrumando um canto da sala, e eu bordando no outro canto. De repente - não, não de repente, nada é de repente nela, tudo parece uma continuação do silêncio. Continuando pois o silêncio, veio até a mim a sua voz: “A senhora escreve livros?” Respondi um pouco surpreendida que sim. Ela me perguntou, sem parar de arrumar e sem alterar a voz, se eu podia emprestar-lhe um. Fiquei atrapalhada. Fui franca: disse-lhe que ela não ia gostar de meus livros porque eles eram um pouco complicados. Foi então que, continuando a arrumar, e com voz ainda mais abafada, respondeu: “Gosto de coisas complicadas. Não gosto de água com açúcar.”
POR DETRÁS DA DEVOÇÃO
Clarice Lispector
Não sei se vocês se lembram do dia em que escrevi sobre minha empregada Aninha: disse que era uma mineira que mal falava, e quando fazia era com voz abafada de além-túmulo. Falei também que ela inesperadamente, enquanto arrumava a sala, me pediu com voz mais abafada ainda para ler um de meus livros, que eu respondi que eram complicados demais, ao que ela retrucou com o mesmo tom de voz que era disso que gostava, não gostava de água com açúcar.
Pois bem, ela se transformou. Como se desenvolveu aqui em casa! Até puxa conversa, e a voz agora é muito mais clara. Já que eu não queria lhe dar livro meu para ler, pois não desejava a atmosfera de literatura em casa, fingi que esqueci. Mas, em troca, dei-lhe de presente um livro policial que eu havia traduzido. Passados uns dias, ela disse: “Acabei de ler. Gostei, mas achei um pouco pueril. Eu gostava era de ler um livro seu.” É renitente, a mineira. E usou mesmo a palavra “pueril”.
Aliás, naquela mesma coluna mencionei minha estranha tendência de chama-la de Aparecida. Acontece que nunca tive empregada chamada Aparecida, nem nenhuma amiga ou conhecida com esse nome. Um dia distraí-me e sem nem sequer sentir chamei: “Aparecida!” Ela me perguntou sem o menor espanto: “Quem é Aparecida?” Bom, havia chegado a hora de uma explicação que nem era possível. Terminei dizendo: “E não sei por que chamo você de Aparecida.” Ela disse com sua nova voz, ainda um pouco abafada: “É porque eu apareci.” Sim, mas a explicação não bastava. Foi a cozinheira Jandira, a que é vidente, quem se encarregou de desvendar o mistério. Disse que Nossa Senhora Aparecida estava querendo me ajudar e que me “avisava” desse modo: fazendo-me sem querer chamar pelo seu nome. Mais do que explicar, Jandira aconselhou-me: eu devia acender uma vela para Nossa Senhora Aparecida, ao mesmo tempo em que faria um pedido. Gostei. Afinal de contas não custava tentar. Perguntei-lhe se ela própria não poderia acender a vela por mim. Respondeu que sim, mas tinha que ser comprada com meu dinheiro. Quando lhe dei o dinheiro, avisou-me que era a hora de fazer o pedido. Este já estava feito há muito tempo, foi só rememorar com fervor. Nossa Senhora Aparecida, me atenda, o que estou pedindo é justo e urgente, estou esperando há tempo demais.
Por falar em empregadas, em relação às quais sempre me senti culpada e exploradora, piorei muito depois que assisti à peça As Criadas, dirigida pelo ótimo Martim Gonçalves. Fiquei toda alterada. Vi como as empregadas se sentem por dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é cheia de um ódio mortal. Em As Criadas, de Jean Genet, as duas sabem que a patroa tem de morrer. Mas a escravidão aos donos é arcaica demais para poder ser vencida. E, em vez de envenenar a terrível patroa, uma delas toma o veneno que lhe destinava, e a outra criada dedica o resto da vida a sofrer.
Às vezes o ódio não é declarado, toma exatamente a forma de uma devoção e de uma humildade especiais. Tive uma empregada argentina que era assim. Pseudamente me adorava. Nas piores horas de uma mulher – saindo do banho com uma toalha enrolada na cabeça – ela me dizia: como usted é linda. Bajulava-me demais. E quando eu lhe pedia um favor, respondia: “Como não! Usted vai ver o que vale uma argentina! Faço tudo o que a senhora pede.” Empreguei-a sem ter referências. Terminei entendendo: antes trabalhava em hotéis suspeitos e seu trabalho consistia em arrumar as camas, em trocar os lençóis. Não podia mesmo dar referências. Também já tinha trabalhado no teatro. Fiquei com pena: tive a certeza de que seu papel no palco era o de criada mesmo, o de aparecer e dizer: “O jantar está pronto, madame.” Mas Tônia Carrer, a quem ela serviu um café e a quem contei que se tratava de uma coleguinha sua, teve uma ideia: ela devia ser uma das contratadas por Válter Pinto para o teatro de rebolado. A sua conversa curta com Tônia foi estranha. Tônia: “Você então é argentina.” A outra: “Sou, e me desculpe.” Tônia: “Desculpe nada, fui muito bem recebida pelos argentinos e gosto muito deles.” Comentário posterior de Carmen – Maria del Carmen era seu nome: “Pero que muchacha linda e simpática!” Dessa vez não era bajulação, era admiração sincera. Del Carmen era extremamente vaidosa. Comprou cílios postiços, mas como não lhes aparou as extremidades, o resultado é que parecia ter olhos de boneca rígida. Terminou indo embora sem sequer me avisar.
Uma outra, que foi comigo para os Estados Unidos, por lá ficou depois que vim embora, para casar-se com um engenheiro inglês. Quando em 1963 estive no Texas para fazer uma conferência de vinte minutos sobre literatura brasileira moderna, telefonei para ela, que mora em Washington. Só faltou desmaiar, e já falava português americanizado. “A senhora deve vir me ver!” Respondi que nem dinheiro eu tinha para uma viagem tão longa. Insistiu: “Pois pago sua passagem!” Claro que não aceitei, além de que nem tempo tinha.
E a empregada que tive e não posso dar seu nome por uma questão de segredo profissional? Fazia análise, juro... Duas vezes por semana ia ver uma Dra. Neide. Telefonava-lhe nos momentos de angústia. No começo não disse que saía para ser psicanalisada, dava outros pretextos. Até que um dia contou que a Dra. Neide achava que eu ia compreender e que ela devia falar a verdade. Compreendi, mas terminei não suportando. Quando ela não estava bem, o que acontecia om frequência, era malcriada demais, revoltada demais, embora depois caísse em si e pedisse desculpas. Só trabalhava com rádio de pilha ligado ao máximo, e acompanhado pelo seu canto de voz aguda e altíssima. Se eu, já infernizada, pedia-lhe que fizesse menos barulho, aí é que aumentava o rádio e alteava a voz. Suportei, até que não suportei mais. Despedi-a com muito cuidado. Uma semana depois telefonou-me para desabafar: não conseguia emprego porque quando dizia às futuras patroas que fazia análise, elas tinham medo. Como era sozinha no Rio, não tivera onde ficar, e dormira duas noites no banco de uma praça, sofrendo frio. Senti-me culpada. Mas não havia jeito: não sou analista, e pouco podia ajudar num caso tão grave. Consolei-me pensando que ela se tratava com Dra. Neide, médica muito simpática, com quem falei uma vez por telefone para saber que atitude eu deveria tomar. Mas o pior não eram os seus inesperados altos e baixos: era a sua voz. Sou muito sensível a vozes, e se continuasse a ouvir aquele trinado histérico quem terminaria se socorrendo na Dra. Neide seria eu.
DAS DOÇURAS DE DEUS
Clarice Lispector
Vocês já se esqueceram de minha empregada Aninha, a mineira calada, a que queria ler um livro meu mesmo que fosse complicado porque não gostava de “água com açúcar”. E provavelmente já esqueceram que, sem saber por que, eu a chamava de Aparecida, e que ela explicou: “É porque eu apareci.” O que eu não disse talvez foi que, para ela existir como pessoa, dependia muito de se gostar dela.
Vocês a esqueceram. Eu nunca a esquecerei. Nem sua voz abafada, nem os dentes que lhe faltavam na frente e que por instância nossa botou, à toa: não se viam porque ela falava para dentro e seu sorriso também era mais para dentro. Esqueci de dizer que Aninha era muito feia.
Um dia de manhã aconteceu que demorou demais na rua para fazer compras. Afinal apareceu e tinha um sorriso tão brando como se só tivesse gengivas. O dinheiro que levara para compras estava amassado na mão direita, e do punho da esquerda dependurava-se o saco de compras.
Havia uma coisa nova nela. O quê, não se adivinhava. Talvez uma doçura maior. E estava um pouco mais “aparecida”, como se tivesse dado um passo para a frente. Essa alguma coisa nova fez com que perguntássemos em desconfiança: e as compras? Respondeu: eu não tinha dinheiro. Surpreendidas, mostramos-lhe o dinheiro na mão. Ela olhou e disse simples: ah. Alguma outra coisa nela fez com que olhássemos para dentro do saco de compras. Estava cheio de tampinhas de garrafa de leite e de outras garrafas, fora pedaços de papel sujo.
Então ela disse: vou me deitar porque estou com muita dor aqui – e apontou como uma criança o alto da cabeça. Não se queixou, só disse. Ali ficou na cama, horas. Não falava. Ela que me dissera não gostar de livro “pueril”, estava com uma expressão pueril e límpida. Se falássemos com ela, respondia que não conseguia se levantar.
Quando dei fé, Jandira, a cozinheira vidente, tinha chamado a ambulância do Rocha Maia “porque ela está doida”. Fui ver. Estava calada, doida. E doçura maior nunca vi.
Expliquei à cozinheira que a ambulância a chamar era a do Pronto Socorro Psiquiátrico do Instituto Pinel. Um pouco tonta, um pouco automaticamente, telefonei para lá. Também eu sentia uma doçura em mim, que não sei explicar. Sei, sim. Era de tanto amor por Aninha.
Enquanto isso vinha a ambulância do Rocha Maia. Foi examiná-la, já sentada na cama. O médico disse que clinicamente não tinha nada. E começou a fazer perguntas: para que tinha juntado as tampinhas e o papel? Respondeu suave: para enfeitar meu quarto. Fez outras perguntas. Aninha com paciência, feia, doida e mansa, dava as respostas certas, como aprendidas. Expliquei ao médico que já havia chamado outra ambulância, a apropriada. Ele disse: é mesmo caso para um colega psiquiatra.
Esperamos a outra ambulância. Enquanto esperávamos, estávamos pasmas, mudas, pensativas. Veio a ambulância. O médico não custou a dar o diagnóstico. Só que internada ela não podia ficar, apenas pronto-socorro. Mas ela não teria onde ficar. Então telefonei para um médico amigo meu que falou com o colega do Pinel, e ficou estabelecido que ela ficaria internada até meu amigo examiná-la. “A senhora é escritora?” – perguntou-me de súbito aquele que vim a saber ser o acadêmico Artur. Gaguejei: “Eu…”. E ele: “É porque seu rosto me é familiar e seu amigo disse pelo telefone seu primeiro nome”. E naquela situação em que eu mal me lembrava de meu nome, ele acrescentou simpático, efusivo, mais emocionado comigo do que com Aninha: “Pois tenho muito prazer em conhecê-la pessoalmente”. E eu, boba e mecanicamente: “Também tenho”.
E lá se foi Aninha, suave, mansa, mineira, com seus novos dentes branquíssimos, brandamente desperta. Só um ponto nela dormia: aquele que, acordado, dá a dor. Vou encurtar: meu amigo examinou-a e o caso era muito grave, internaram-na.
Nessa noite passei sentada na sala até de madrugada, fumando. A casa estava toda impregnada de uma doçura doida como só a desaparecida podia deixar.
Aninha, meu bem, tenho saudade de você, de seu modo gauche de andar. Vou escrever para sua mãe em Minas para ela vir buscar você. O que lhe acontecerá, não sei. Sei que você continuará doce e doida para o resto da vida, com intervalos de lucidez. Tampinhas de garrafa de leite é capaz mesmo de enfeitar um quarto. E papéis amarrotados , dá-se um jeito, por que não? Ela não gostava de “água com açúcar”, e nem o era. O mundo não é. Fiquei sabendo de novo na noite em que asperamente fumei. Ah! com que aspereza fumei. A cólera às vezes me tomava, ou então o espanto, ou a resignação. Deus faz doçuras muito tristes. Será que deve ser bom ser doce assim? Aninha tinha uma saia vermelha estampada que alguém lhe dera, muito mais comprida do que seu tamanho. Nos dias de folga usava a saia com uma blusa marrom. Era mais uma doçura sua, a falta de gosto.
– Você precisa arranjar um namorado, Aninha.
– Já tive um.
Mas como? Quem a quereria, meu Deus? A resposta é: por Deus.
DE OUTRAS DOÇURAS DE DEUS
Clarice Lispector
Eu tinha escrito sobre Aninha logo que ela adoeceu. Passou-se um tempo e eis que ela bate à minha porta. Por meio segundo assustei-me, mas logo vi que estava melhor. Ela mesma lembrara-se de nossos nomes e endereço, e pedira para visitar-nos e buscar o dinheiro que eu lhe devia. Ainda não recebeu alta, mas deixaram-na sair como teste. Está mais bonitinha, à custa de ter engordado com tantos soros, e tomou três choques elétricos. Achou meus filhos crescidos, e comoveu-me quando perguntou: “a senhora ainda está escrevendo?” Dei-lhe o dinheiro, e a cozinheira-vidente disse: “Conte para mostrar que você sabe contar.” Contou direito, e mais: notou que eu lhe pagara o mês todo e agradeceu. Agora diz que quer ter um namorado e mesmo ir para um programa de televisão que arranja casamento. No hospital descobriram as potências de Aninha, e, depois que tiver alta, vai ficar lá trabalhando por uns tempos. Nossa casa estava alegre.
Fonte: Livro "A Descoberta do Mundo", de Clarice Lispector. Editora Rocco, 1999.