

Nelson: uma visita pela fechadura
Amanda Franciele Silva
Eu, que sempre digo seu nome no diminutivo e com carinho, não sei como começar a falar dele. Talvez seja exatamente pela "proximidade", por querer que fosse meu amigo, pelo medo de errar e não fazer jus. A questão é que Nelson Rodrigues merece um perfil redondinho, caprichado e inesquecível como seus textos. E não me sinto à altura de ao menos tentar escrever como ele, mas é preciso que as pessoas conheçam o Nelsinho que eu admiro.
Polêmico sim, muito polêmico. Nelson gostava de escancarar a vida secreta da sociedade. Espiava pela fechadura e contava ao mundo os segredos que via. Não media palavras, não se omitia. Era autêntico. E sua autenticidade pode ser vista em inúmeros lugares: teatro, romance, contos, crônicas, entrevistas, jornalismo... Nelson tinha várias facetas. Não tinha medo das críticas ou mesmo de perder os amigos (que julgava não ter, como disse uma vez em entrevista a Clarice).
O pernambucano, nascido em 1912, é reconhecido dramaturgo, mas, às vezes, se esquecem de seu “palco principal”: o jornalismo. Filho de Mário Rodrigues e irmão de Mário Filho, ambos jornalistas, Nelsinho cresceu nos jornais da família e, trabalhando ali desde os 13 anos, inicialmente como repórter policial, nunca abandonou os caminhos da família: permaneceu jornalista ao longo da vida.
Mudou-se com a família para o Rio de Janeiro em 1916, ainda criança, e, encantado por futebol, tornou-se torcedor do Fluminense. A seleção brasileira, então, era uma de suas grandes paixões. Escreveu inúmeras crônicas esportivas para jornais reconhecidos como Jornal dos Sports, Manchete Esportiva e O Globo. Vivenciou um dos maiores traumas do Brasil, a derrota para o Uruguai na final da Copa de 1950. Nunca se esqueceu do fato que ocorreu no Estádio que seu irmão ajudou a erguer: o Maracanã ou, atualmente, Estádio Municipal Mário Filho. O local, aliás, era quase como uma segunda casa de Nelson. Mesmo sem enxergar direito, por causa da perda de parte da visão - sequela da tuberculose -, ia ao maior número de jogos possíveis. Gostava da vivência. Era apaixonado por esportes, dos mais variados, como boxe, remo, basquete e alpinismo, mas foi no futebol que se tornou um “Homero” e consagrou também vários jogadores, como Didi, o “Príncipe etíope do rancho”; Amarildo, o “Possesso” e Denilson, o “Rei zulu”.
Em suas peças e em obras como "A vida como ela é", Nelson foi considerado pornográfico. O escritor não se limitava a fazer histórias comuns, ele causava. Mostrava adultérios, mortes e sexo. No começo, dividia o público e a crítica, mas, com seu estilo próprio, ganhou reconhecimento e ainda teve obras adaptadas para o cinema e a televisão. Foram 17 peças, entre elas, “Vestido de noiva”, “Álbum de família”, “Anjo negro”, “A falecida” e “Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária”; nove romances, entre eles, “O casamento”; três novelas, e vários contos e crônicas.
Apesar de polêmico, Nelson era ligado à família. Quinto filho de Mário e Maria Esther Falcão e irmão de uma prole numerosa (Milton, Roberto, Mário Filho, Stella, Joffre, Maria Clara, Augustinho, Irene, Paulo, Helena, Dorinha, Elsinha e Dulcinha), a vida do torcedor tricolor parecia uma de suas escritas. A tragédia cercava os Rodrigues: Mário, o pai, sempre envolvido em política, foi preso; Dorinha, a irmã, adoeceu e faleceu, assim como o irmão Joffre. Nelson ainda viu seu irmão Roberto ser morto a tiro no lugar do pai, que veio a falecer aproximadamente dois meses após a tragédia. O escritor perdeu também os irmãos Paulinho, em um acidente, e Mário Filho.
Nelson também teve seus amores e constituiu família. Casou-se com Elza Bretanha, com quem teve dois filhos: Joffre, em homenagem ao irmão, e Nelson Filho, que viria a ser procurado e preso, e por quem teve de interceder diversas vezes. O cronista manteve ainda um romance extraconjugal com Yolanda Camejo, com quem teve três filhos: Maria Lúcia, Sônia e Paulo César, que viriam a ser reconhecidos após a morte do autor. Separou-se de Elza e teve Lúcia Cruz Lima como companheira. Com ela, teve Daniela, filha que nasceu prematura e com paralisia cerebral e, por isso, não consegue falar ou enxergar. O pernambucano, porém, se separou novamente e morou com Helena Maria antes de voltar para o casamento com Elza. Com a primeira esposa, terminaria a vida e dividiria o nome na lápide.
Passou por tanta tragédia na vida que não parecia ter apenas 68 anos quando faleceu no Rio de Janeiro, após vários problemas de saúde dos inúmeros que teve durante a vida. Entretanto, apesar da idade, Nelson não passava de um menino, como ele mesmo se definia. Sapeca e fuxiqueiro, mas um menino espiando a vida e escrevendo sobre ela, misturando ficção com a realidade. Sua forma de escrever era única, tão marcante, que deixou gravados expressões como: “pátria de chuteiras”, “sobrenatural de Almeida”, “complexo de vira-latas” e “toda unanimidade é burra”.
Apesar de conhecido por sua cara amarrada tanto quanto por suas polêmicas, não se deve julgar Nelson pela falta de sorriso. É preciso reconhecer sua sinceridade e se encantar com ela. Eu, se tivesse oportunidade, gostaria de ser sua amiga, mesmo que ele viesse a me falar algumas verdades. Como isso não é possível, continuo a defendê-lo: Nelsinho era um apaixonado incompreendido.
“Mesmo os seus piores inimigos nunca lhe negaram o talento – e não foram poucos os que o chamaram de gênio. [...] Para alguns, um santo; para outros, um canalha; para todos, sempre, uma surpresa ambulante.” (Ruy Castro)
“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, minha ótica de ficcionalista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico.” (Nelson Rodrigues)
Informações retiradas do livro "O anjo pornográfico", de Ruy Castro e do site Enciclopedia Itaú Cultural (http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa4409/nelson-rodrigues).