
Perfil do campeão
Nelson Rodrigues
Sim, amigos, Martim Francisco tem apenas 28 anos. Ora, aos 28 anos que somos todos nós e cada um de nós? Muito pouca coisa. O jovem está sempre no dilema: – ou é um gênio ou um bobo, ou um Rimbaud ou um débil mental, desses que babam. Depois é que a vida, o tempo vão retocando a nossa crassa e inepta pessoa. A vantagem de Martim Francisco é a seguinte: – não há a menor coerência entre a sua idade e o seu amadurecimento interior. E pelo contrário: – os 28 anos confessos do mineiro são um disfarce de um considerável lastro vital. Admitamos que ele não tenha, ainda, uma pessoal e direta experiência de vida. Mas já viveu bastante pela inteligência, pela imaginação, pela intenção.
Examinem a sua atitude frente ao Vasco e ao campeonato. Não foi, jamais, e estritamente, um técnico de bola. Ele se impôs, aos seus comandados, desde o primeiro instante, pelo jeito patriarcal. Se lhe conferíssemos umas barbas negras e abundantes, ele assumiria toda a aparência física de um patriarca. O time do Vasco vive debaixo da sombra larga e cálida de Martim Francisco. Usei a imagem do patriarca para melhor caracterizar o seu papel junto à equipe. Um técnico de futebol funciona apenas como um técnico de futebol. Essa limitação, porém, é, muitas vezes, fatal. Pelo seguinte: – o rendimento de um jogador, em campo, depende, não raro, de fatores extra-esportivos.
Por exemplo – uma dor-de-cotovelo. Castigado por uma dor-de-cotovelo, um craque já está incapacitado para um simples e reles arremesso lateral. E aqui eu pergunto: – como tratar a frustação amorosa de um jogador? Não há de ser com individual, não há de ser com ginástica, não há de ser com bate-bola. É o momento em que o técnico deixa de ser técnico para se tornar um pouco o confessor, o padre, o psicólogo. Nessas condições, ele passa a exercer o que eu poderia chamar, talvez, de medicina psicológica.
Na minha opinião, a grande força de Martim Francisco está em ser, além de técnico de bola, um técnico de alma. Diante dele, de sua atenção muito lúcida, o craque há de ter impressão do cliente no divã do psicanalista. O jogador não é apenas jogador, mas também, sobretudo, um homem. Tratado como homem, ele já renderá muito mais como jogador. Martim Francisco só venceu como técnico depois de ter vencido como psicólogo. Sim, amigos: – o técnico tem que ser um consultório sentimental para o craque. Do contrário, não dará, nunca, ao seu time, o élan de um campeão.
Vejam o resultado do seu trabalho dentro do Vasco: – conferiu uma alma à equipe. Ou por outra: – acudindo e resolvendo os problemas íntimos de cada jogador e de todos os jogadores, ele deu ao quadro uma imensa saúde interior. Ao longo do campeonato, o clube da Cruz-da-Malta pode ter falhado tecnicamente, taticamente. Mas nunca lhe faltou o impulso interior para a vitória ou para a luta. O colapso técnico não era acompanhado pelo colapso da alma. Muitas vezes, o Vasco estava sendo dominado pelo adversário, mas sempre dando tudo, sempre molhando a camisa. Jogou umas vezes bem, mal outras, mas teve, sistematicamente, como característica fundamental, uma gana irresistível e, não raro, dramática. Direi mais: – cada partida do Vasco tem sido uma lição de amor ao clube. E que é tudo isso senão o trabalho de Martim Francisco, que soube amadurecer o coração dos seus jogadores para a vitória?
Manchete Esportiva publicou uma fotografia que explica a jornada cruz-maltina, em 56. Refiro-me ao flagrante de Válter chorando, no vestiário. Essas lágrimas de homem e de craque dizem tudo. Quando um jogador chora, não porque perdeu, mas porque acha que jogou mal, está salva a pátria. Um sentimento assim vivo e assim agudo de responsabilidade, que não é de um, mas de todos os cruz-maltinos, teria que levar o Vasco à conquista do título.
Fonte: Livro "O berro impresso das manchetes", de Nelson Rodrigues. Editora Agir, 2007.